Textos de Emílio Remelhe e pseudónimos em catálogos e outras publicações
Revista Macau, Revista Mãos, Margens e Confluências, Malasartes, Search, Águas-furtadas, Uporto, + Arquitectura, DP Photographer
Desrelógios Despertadores
Para Luísa Dacosta e Cristina Valadas, 2011.
Ode Expiatória
Para Renato Roque, 2010.
N de Não Lugar
Para Joana Rêgo, 2009.
Mente Semente
Para Cristina Valadas, 2008.
Despacho Criativo
Para alunos FBAUP + Rui Mendonça, 2008.
Cirurgia Romântica
Sobre Gémeo Luis, ilustradores portugueses em Bolonha, 2008.
Floresta de Clareiras
Sobre Cristina Valadas, ilustradores portugueses em Bolonha, 2008.
Os brinquedos que não servem para brincar brincam sozinhos
Para Matilde Rosa Araujo e Gémeo Luís, 2007.
Posta Restante
Para Valdemar Santos, 2007.
Golpes de Memória
Para Maria Mendes Barthes e Gémeo Luís, 2007.
Trondheimirror
Para Renato Roque, 2007 (digital)..
Main Steam
Para Paulo Moreira, 2006.
Meia Palavra em Três Letras sobre um Livro Inteiro
Para Manuela Barros e André Carvalho, 2006.
Entre o Corpo e a Mente
Para Cristina Valadas, 2006.
Tal e Coisa e os Cinco (Re)sentidos
Festival Escrita na Paisagem, 2006.
A Ética e a Óptica e vice-versa
Para Renato Roque, 2005.
Recortar Mundos
Para Gémeo Luís, 2005.
Édentropia
Para Paula Vieira, 2004.
Lugares (In)comuns
Para António Quadros Ferreira, 2004.
Dentro de Mim os Outros
Para Cristina Valadas, 2003.
O Mundo Esquerdo
Para Manuela Bacelar, 2003.
Habitação da Memória
Para João Caetano 2003.
Bunker ao Sol
Para Maria Mendes Barthes, 2003.
R.O.T.
Para mostra ESAD/ANJE, 2000.
Pedaços do Éden
Para Paula Vieira, 1995.
Átomos-Feras
Para Cristina Valadas,1995.
pt.ilustração portuguesa contemporânea no Palazzo d´Accursio, Bolonha, 2008,
Comissários:Ju Godinho e Eduardo Filipe, design da exposição: Luís Mendonça, catálogo: Rui Mendonça.
Com textos de Ana Margarida Ramos, João Paulo Cotrim, Ana Ruivo, Sara Reis da Silva, Jorge Silva e Emílio Remelhe
Floresta de Clareiras Ecos sobre Cristina Valadas
Transformo a minha voz num eco evocando outras vozes surgidas a propósito da autora. Cristina Valadas é pintora. Mas o álbum para a infância era, parece-me, inevitável. Não como lugar de chegada nem como ponto de partida pois o que quero dizer é que sempre terá estado à espreita. Ou, dito de outra forma, porque todo o percurso da pintora se perde nos meandros da infância [1]. Não se trata de memórias, de regresso ao passado, mas da permanente actualização da infância eterna que se afia em cada jogo, como se afia o lápis em cada momento do desenho. Kandinsky dizia que o artista, que durante toda a sua vida se assemelha bastante à criança, está muitas vezes mais apto do que os outros para se aperceber da ressonância interior das coisas.
A pintora continua menina [2], mas numa infância que nada tem de infantil. É um cultivo (pre)meditado, uma procura circular através de sinais esquemáticos de uma escrita cifrada para encontrar a infância no mapa das fantasias interiores, do deslumbramento e do maravilhoso [3] articulada em dois andamentos: por um lado, o contínuo que nos proporciona o jogo da retoma (tão caro à infância), por outro lado, a surpresa que nos desloca para outras instâncias; o que é uma surpresa? É um momento em que uma linguagem, um discurso, um mundo se abre a novas formas de representação [4].
Dos grandes formatos da tela de linho às pequenas folhas de papel manufacturado, dos grandes gestos embebidos em tinta ao dedilhar seco de uma linha de algodão, da perenidade dos materiais aos fragmentos efémeros, as formalizações surgem como epifanias, as pinturas corporizam algo de inaugural [5].Vejo-as como fragmentos narrativos, como se cada uma delas nos desse a ver sempre e só uma parte da imagem inacessível, que supera todos os suportes, todas as dimensões: a autora avança no sentido de fazer da pintura um dispositivo narrativo amplo [6]. Por isso um texto a ilustrar nunca é apenas um texto, um livro nunca é apenas um livro. Participam do dispositivo que mantém a pintora suspensa na fronteira das linguagens e do seu risco, certamente perto de uma narratividade ilustrativa, que supera, na consciência dela, quando um rio de sensibilidade corre mais fundo como tempo interior da sua própria autenticidade [7].
Se a investigação das coisas é coisa do olhar, tanto melhor: a autora vê como se não falasse nem escrevesse. Traduz as coisas por imagens suas, reinventa, verte, como se as imagens nunca tivessem sido antes de o serem. Dito de outra forma, os seus olhos vêem com a pureza do olhar primeiro [8]. Mas de onde vem o que vê? Bastará pensar na vontade e condição do próprio modo de ver? Lembro-me de ela se lembrar como se fosse hoje: quando leccionava, os alunos metiam-se-lhe na cabeça sob a forma de personagens que ela desenhava, em sínteses (antropo)(zoo)fitomórficas. Como quem, nunca se livrando das coisas, seja por gostar delas, seja por não gostar, as transforma noutras. Pois: é na cabeça que tudo se desdobra/ e o sonho se semeia [9]. Com os pincéis embebidos na metáfora e noutras figuras liquefeitas, os gestos (re)configuram as ideias das ideias, as ideias dos textos, as ideias dos materiais, num palimpsesto filtrado pelo silêncio. Seguramente, no Jardim Encantado da Cristina Valadas podem colher-se as mais singulares e fecundas ilustrações de textos para a infância [10].Poderia ser tudo quanto basta a quem ilustra. Mas não: ela ainda há-de ensinar/os anjos a pintar [11].
Emílio Remelhe
[1] Mário Só [2] Fernando Pernes [3] Maria João Fernandes [4]Paulo Cunha e Silva [5]José Luís Porfírio [6] Bernardo Pinto de Almeida [7] António Cardoso [8] Luísa Dacosta [9]Manuel Alegre [10]Álvaro Magalhães [11] Jorge de Sousa Braga
Cirurgia Romântica Uma aproximação a Gémeo Luís
Gémeo Luís é um caso peculiar no panorama da ilustração portuguesa contemporânea. Não faz mal que seja um amigo a dizê-lo, uma vez que é notório. Como ilustrador, designer e editor, fertiliza os diversos terrenos do cultivo bibliográfico e tem vindo a marcar o álbum para a infância com um carácter próprio. Em Gémeo Luis, o acto de ilustrar está muito para além da mera relação do desenho com o texto. É o compromisso com o livro, objecto final, que coloca como condição de princípio: na valorização das múltiplas funções do livro, no respeito pelo produto dos autores, na sobrevivência, afinal, do que se pretende fazer chegar ao público. Os livros que lhe saem das mãos são, por isso, objectos onde no mínimo se potencia o máximo.
Gémeo Luis, já o disse antes, vive com pouco tempo mas não consegue sobreviver sem muito espaço: físico, mental, afectivo. É (atr)actor de uma experiência diária intensa e heterogénea. E na capacidade de orquestrar o disperso, parece residir o enriquecimento de cada uma das coisas que faz, como se os diversos pontos de vista lhe devolvessem uma perspectiva panóptica que usa como janela principal (o seu mapa activo inclui a divulgação da ilustração, a promoção do trabalho dos seus pares). Nos antípodas da megalomania, está uma consciência sonhadora mas pragmática, poética mas calculada, fazendo juz ao necessário equilíbrio do racional e do emotivo como verso e anverso da nossa moeda de troca com o mundo. A sua energia é geminada – como sugere o seu pseudónimo. Uma energia que se recarrega paradoxalmente através do próprio consumo, numa irrequietude à flor-da-pele, reflexo da inquietude muscular, óssea. O quadro de recursos e referências do trabalho de Gémeo Luis é por isso heterogéneo. Inscrito numa vivência impregnada de problemas de design, de arquitectura, de docência, de ilustração, de livros... é numa teia referencial de categorias distintas que o seu trabalho se motiva e motoriza. Tanto é permeável ao desenho de um puxador de uma porta como à história da ilustração. Na nossa memória colectiva, a antropologia do recorte, da silhueta, leva-nos quer ao ancestral, quer ao passado recente. Entre referências cujo elenco não caberia aqui, e que, numa grosseira alusão, podemos ver da pré-história à cultura vitoriana, das sombras chinesas a Matisse ou das marionetas indianas a Andersen, instalaram-se processos de grande economia e capacidade expressiva. É este denominador comum, este princípio basilar do desenho, da representação, que interessa a Gémeo Luís: para além de outras ressonâncias, é essencialmente este acesso, este recuo a uma génese cujos argumentos transformam o menos em mais. Gémeo Luís desenha com o bisturi como se de um lápis se tratasse, num atelier impaciente, completamente demarcado do labor aturado e artesanal. Formaliza as suas narrativas através de um conjunto intrincado e permeável de estratégias gráficas e retóricas (nivelamento e acentuação, relação positivo-negativo, multiplicação de pontos de vista, tensão e distensão, ambiguidade...). Variando o modo como usa o plano de representação, convida o observador ora a entrar em cena, ora a usar as imagens como mapas (dos tesouros a descobrir), envolvendo-o numa experiência dinâmica quer em termos sinestésicos quer ao nível entrópico. Não é o efeito que seduz o ilustrador mas o desafio sobre resultados que procura sintetizar sem prescindir da complexidade, num processo que se estende do caderno (auto)biográfico à mesa de trabalho. Consciente de que a ilustração é um meio, Gémeo Luís ultrapassa o problema da adequação, construindo, através do recorte de papel kraft, objectos, desenhos que valem por si.
Quanto aos textos que ilustra, poderia estender outro tanto de conversa, mas vou tomar de empréstimo, para abreviar, uma afirmação de Paul Klee: em vez de volumosos tratados, prefiro uma palavra viva que me desperte.Também Gémeo Luís submete o texto a ilustrar ao rastreio dessas palavras vivas. Toma-as como chaves para reentrar na mnemónica gigantesca do (seu) mundo, para de lá trazer, na sua simplicidade complexa, com que mobilar o nosso.
Emílio Remelhe / Eugénio Roda